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Antidepressivos e a busca por Shangri-La


A lenda de um paraíso terrestre no qual a felicidade pode ser encontrada é um dos mitos mais antigos do mundo. A tradição judaico-cristã menciona o Jardim do Éden, no qual todas as necessidades de Adão e Eva eram servidas. De um certo modo, a busca por Canaã em Êxodo também é uma busca por um paraíso, uma terra que "emana mel e leite" (Êx 3:8, 17). Na fase dos descobrimentos, Francisco Orellana e Gonzalo Pizarro foram tomados de uma febre em 1541 na busca por El Dorado, outra versão do mito, cidade de ouro na qual pode-se encontrar felicidade sem igual. É certo que nem Pizarro nem Orellana buscavam a felicidade ou juventude eterna e sua busca foi motivada por ganância.

Shangri-La encontrado em cena do filme Sky Captain and the World of Tomorrow (br: Capitão Sky e o Mundo de Amanhã / pt: Sky Captain e o Mundo de Amanhã)

A história de Shangri-La se inicia no romance inglês Lost Horizon (1933), de James Hilton. O livro fala de uma comunidade de lamas tibetanos no vale perdido de Shangri-La, completamente cortado do resto do mundo. Toda a sabedoria humana está contida neste vale, nos tesouros guardados e na mente das pessoas que se encontram ali em face de uma catástrofe iminente. O livro de Hilton, escrito pouco antes da Segunda Guerra Mundial, ganhou imensa popularidade e mesmo hoje vemos diversos locais paradisíacos (hotéis, parques) com nome Shangri-La. Não é de surpreender, portanto, que mesmo hoje em dia as pessoas se sintam atraídas pela ideia de um paraíso perdido no qual as marés do tempo e história não influenciem diretamente, onde os seres humanos vivam em harmonia com a natureza e a sabedoria do planeta seja resguardada para futuras gerações. Mais do que um local, Shangri-La hoje é uma metáfora utilizada para representar um paraíso escondido do homem moderno. Shangri-La também representa a perfeição buscada pelo homem, seja na forma de amor, felicidade ou outros ideais utópicos. É este último sentido do nome que interessa nesta opinião: A busca por Shangri-La em um frasco de comprimidos. Enquanto a opinião das doenças mentais até 20 anos atrás era altamente estigmatizada e estar em tratamento psiquiátrico era vergonhoso, alguns transtornos parecem ter quebrado esta barreira: a depressão, o transtorno bipolar e o TDAH. Embora os outros transtornos mentais ainda sofram de preconceito, como a esquizofrenia, os outros caíram nas graças do povo e dizer que tem transtorno bipolar ou que se toma antidepressivos deixou de causar espanto e passou a fazer parte do dia-a-dia da sociedade atual. A depressão hoje parece ser resposta para tudo: para a frustração com o marido adúltero, para o sofrimento causado pelo filho toxicodependente, para a solidão, para o tédio. Todos viraram motivos para a procura de um profissional médico e o atestado de um quadro mental depressivo, associado à pílula mágica que se espera corrigir todos os problemas. Não digo que a depressão não existe. Ela não só existe como é grave e requer tratamento. O que questiono aqui é a necessidade de medicalizar as angústias da vida normal. Outro dia uma amiga me ligou e estivemos a comentar sobre um familiar seu: alcoólico de longa carreira, abstinente no momento, desempregado, com inúmeras dívidas. Este senhor deu diversos golpes durante sua carreira profissional, desviando dinheiro das firmas em que trabalhava, fazendo um filho em cada cidade e agora, vendo-se apertado e só, buscou ajuda na família, a chorar, dizendo-se arrependido. "É depressão, Vanessa?", perguntou ela. Não era... até mesmo desvios do caráter entram na mistura que hoje se vê como transtornos do humor. O mesmo caso se passou com outra amiga, que me contou da irmã (25 anos), belíssima, dada a "ataques" de jogar coisas ao chão (vasos, estátuas) quando sua mãe lhe negava os desejos. Difícil, a menina briga com a família inteira para conseguir seus objetivos, causando um verdadeiro inferno em casa. O pai não aguentou mais e a levou ao psiquiatra, que validou seus comportamentos com um diagnóstico de "transtorno do pânico" e uma prescrição de antidepressivos. Vivemos em uma sociedade na qual a frustração não é reconhecida. A frustração, não a felicidade, é o estado natural do ser humano. Somos frustrados ao nascer, retirados do calor e conforto maternos, jogados em um ambiente frio, em contato com luvas estéreis, em um mundo de fome e dor. A frustração por não alcançar o objeto colorido do outro lado do quarto nos faz engatinhar e andar. A frustração pode ser entendida como força motriz dos avanços da humanidade: sem ela, estaríamos num estado de apatia. Devido a ela, construímos casas confortáveis, buscamos ter o melhor para tapar aquele buraco sem fundo que se instalou ao nascimento. Entretanto, a frustração hoje é completamente negada na sociedade de consumo. Desde pequenos somos bombardeados com a noção de que a felicidade é o estado natural do ser humano e se não somos felizes é porque não temos o suficiente. Quer ser feliz? Use colgate e sorria como as moças da propaganda. Quer ser feliz? Compre o último lançamento em carros e não somente será feliz ao dirigi-lo, como parece que a moça seminua sobre o capô pode ser incluída na transação. Nesta sociedade de respostas "rápidas e fáceis" a mensagem é "sua frustração é somente culpa sua e ninguém mais a sente". Essa necessidade rápida de resolver um mal-estar, sem espaço para lidar com os sentimentos ou demonstrar a fraqueza de pedir ajuda também tem sido apontada como uma das raízes do problema das drogas, mas isso é assunto para outro post. Se nada disso resolver e, se como a maioria dos seres humanos você não tiver fundos suficientes para comprar a Ferrari, o iate, etc., a felicidade está no fundo de um frasco de comprimidos. Sim, pois se a frustração não é normal, só pode ser doentia e doenças se resolvem no médico, de preferência em uma transação rápida (como tudo que ocorre no mundo moderno) na qual o médico valide sua suspeita e passe-lhe o "atestado" de deprimido. E assim ganham a indústria farmacêutica, que vende milhares de antidepressivos em doses crescentes a cada ano. Ganham diversos médicos ignorantes ou inescrupulosos, que preferem prescrever rapidamente a conversar com o paciente, ouvindo-lhe as queixas; ganham prêmios os representantes farmacêuticos por serem os campeões de prescrições de tal marca de antidepressivos. Perdem o público em geral, que está engolindo medicamentos sem necessidade e a Psiquiatria, que passa de ciência a guru de autoajuda. Os antidepressivos são hoje as drogas mais prescritas no mundo, mas ainda são umas das menos entendidas. É importante perceber que para os pacientes com transtornos de humor, para os quais o quadro é tão limitante que dificilmente exercem suas atividades de lazer ou trabalho e mesmo sair da cama pela manhã para ir ao banheiro é uma batalha, o antidepressivo tem efeitos bem relatados. O problema está nos quadros depressivos leves e moderados, que podem facilmente ser confundidos com problemas normais do dia a dia e na eficácia das novas classes de medicamentos. Enquanto a moda do Shangri-La fluoxetina continuar, ninguém é jovem ou velho demais para tomar o comprimido. Crianças, idosos e até gatos e cachorros hoje levam para casa o valioso pedacinho de papel que traz o nome do seu Shangri-La de escolha, prontos para mergulhar na fonte da felicidade compactada em cada pequena esfera de droga antidepressiva.



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