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Perdão, Doralice! Confissão de um medico.


Eu recebi este texto de umas senhoras da Pastoral da Saúde da Igreja Católica em 1996, quando estava no primeiro ano do curso de medicina. Independente de sua crença religiosa, o texto abaixo é um depoimento verdadeiro de um médico sobre sua relação com uma paciente. Muitas vezes eu utilizei este texto quando convidada para a disciplina de Semiologia ou CCAS (Ciências do Comportamento Aplicadas à Saúde - do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Uberlândia). A versão que tenho comigo (e que carreguei por todas minhas mudanças de países e continentes) está amarelada e aparentemente foi publicada na revista "Mensageiro do Coração de Jesus, Julho/Agosto de 1996. Muitas vezes leio e releio para lembrar nós médicos tratamos de almas tanto quando do corpo. Provavelmente esse texto, que veio


"Perdão, Doralice. Na verdade, eu estava cego. Você tentou suicidar-se bebendo soda cáustica. Era o que tinha à mão, na modesta cozinha onde sua mãe passava os dias. Fiquei imaginando que problemas tão graves a levaram, aos dezesseis anos, a desistir da vida. Que choques emocionais, conflitos de sentimentos, teriam ferido tão profundamente o cerne de sua existência, ainda tão tênue e indefinida?


Por que você não respondia aos insistentes apelos de sua mãe? Por quê? Quando tivesse passado o perigo, iria perceber que o problema que a levara àquele ato não era tão grave assim. Chegando à idade adulta, veria como é banal e sem importância o que parece grave e assustador na juventude.


No momento, eu precisava salvar-lhe a vida. Você tinha a boca, o esôfago e, certamente, o estômago queimados. Não conseguia engolir, babava. Era preciso fazer outra boca no abdome. Você não teria mais paladar, não conheceria o sabor dos pratos, não poderia beber água quando tivesse sede. Os alimentos seriam jogados diretamente no estômago.


Sob o efeito do anestésico, você dormia serenamente. Lembro-me de que parei alguns instantes, o bisturi esquecido na mão, e senti remorso, como vândalo a desfigurar suas formas perfeitas. Um traço de sangue riscou seu ventre. O estômago estava queimado e retraído. A principio, pensei em alargar o esôfago. Passaria um fio pelo nariz, que seria apanhado através da abertura do estômago. Amarraria sondas cada vez mais grossas ate dilatá-lo completamente.


Esperança vã. O esôfago estava fechado. Teria de retirá-lo e substituí-lo por um pedaço de intestino. Uma ponta seria costurada na boca e a outra no estômago. Operação grave. Deveria abrir o pescoço, o tórax e o abdome. Era preciso retirar uma costela. O pedaço do intestino iria passar por trás do coração. Você necessitava estar bem preparada: corrigir a anemia e esterilizar os intestinos, destruindo os micróbios.


Luta árdua, de seis horas. Quatro cirurgiões, dois litros de sangue, vários litros de soro. Tubos grossos de borracha furavam-lhe o peito, entre as costelas. Aparelhos de vácuo mantinham pressão negativa nos pulmões, garantindo a operação.


Quando tudo ia se ajustando, você contraiu pneumonia. Tossia a todo instante. A sonda do nariz, que levava alimentos além das costuras, e era a sua garantia, saíra num acesso de tosse. Os pontos, forçados, deram em abscesso. A infecção abriu a sutura. A comida não ia ao estômago, escapava pelo pescoço. Longos dias de penosos curativos, mas a fístula não fechava. Você precisava ser operada novamente.


Três horas foram gastas para consertar as emendas e passar novo tubo. Tínhamos uma grande aliada! Sua juventude. Em pouco tempo, você se restabelecia, tudo ia bem. De repente, nova dificuldade. A comunicação que se abria no estômago começara a fechar-se, mal permitindo a passagem de um pouco d'água. Alimentos eram retidos. Somente nova operação poderia corrigir o defeito.


Pela terceira vez, você desfilou pelos corredores, adormecida na maça. Mais duas horas de cirurgia, anestesia, oxigênio, soros e transfusões. Nem parecia mais a mesma, quase caricatura do que fora. Magra, olhos salientes, rosto afilado, destacando o nariz. E novamente você triunfou, resistiu, restabeleceu-se rapidamente.


Curta alegria. A nova passagem começou a estreitar-se pouco a pouco. Você precisava ajudar com a mão, comprimindo com força o bocado de comida, para forçá-lo a descer. Por fim, só conseguia ingerir líquidos. Radiografias mostraram o estreitamento fechando-se cada dia mais. Eu deveria operá-la pela quarta vez.


Agora tudo era mais difícil. Foram horas de trabalho penoso. Tecidos duros, irreconhecíveis, atravessados por cicatrizes em todas as direções. Terminada a operação, a passagem ficara ampla e fácil. Felizmente tudo correra bem. Agora você engolia qualquer alimento sem dificuldade. O pedaço de intestino posto no lugar do esôfago desempenhava perfeitamente sua nova função. Os alimentos deglutidos passavam rapidamente ao estômago, sem dificuldade. Você começava a ganhar peso e força, recuperando os quilos perdidos.


Seis meses internada, quatro vezes operada, trinta radiografias, seis litros de sangue, muito mais do que possuía em seu corpo, dias e noites de cuidados e dedicação de médicos e enfermeiras, era o balanço sumário de sua cura. Apressei-me em dar-lhe alta, satisfeito pelo resultado do enxerto e por vê-la retornar à vida. Ás minúcias, as complicações, o funcionamento do novo esôfago absorviam minha atenção.


Ao despedir-me, pedi que voltasse dentro de três meses para novas radiografias de controle. Você, que tanto sofrera e raramente ria, deu-me o prêmio do sorriso. Foi embora.


O êxito do caso animava-me a apresentá-lo num próximo congresso médico. Você, porém, reservara para si o último ato. Em sua breve existência, na pequena experiência de sua imaturidade, veio ensinar a homens velhos e calejados que é inútil reparar o corpo sem lancetar também os abscessos da alma.


Dias após haver nos deixado, recebi chamado urgente para ir ao Pronto-Socorro. Você se suicidara, bebendo formicida. Ao afastar o lençol branco, admirei-me ao vê-la tranquila. Desaparecera aquela tristeza infinita que eu atribuía ao sofrimento físico. Peguei sua mãozinha inerte, passei os dedos por seus cabelos úmidos, por seu rostinho ainda quente, como o fizera tantas vezes. Baixei a cabeça e, em profunda tristeza, pedi-lhe perdão.


Perdão, Doralice. Na verdade, eu estava cego. Preocupado com os males do corpo, esqueci o seu espírito, ainda mais doente. Como pude descuidar-me das feridas da alma, se, naquele dia, quando você se obstinava contra seus pais, traíra seu sofrimento? É o eterno engano dos cirurgiões, que palpam tumores, e não se lembra de que há um coração oculto vibrando em ânsia, sonhos e sofrimento.



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