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Uma patobiografia de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas

Foto do escritor: Vanessa MarsdenVanessa Marsden

Republicação de um texto publicado Segunda-feira, 29 de março de 2010


Este post é uma patobiografia de Lewis Carroll. Patografia é um estudo retrospectivo de "casos clínicos focados na biografia de determinada personalidade famosa portadora de transtorno mental, com objetivo de apresentar elementos psicopatológicos interessantes e o significado destes para sua obra" (ABP, 2000)



Lewis Carroll não era seu verdadeiro nome, mas um pseudônimo literário adotado por Charles Lutwidge Dodgson. Entretanto, para fins de simplificação, vou chamá-lo de Lewis Carroll por todo o texto.


Lewis Carrol
Lewis Carrol

História Pregressa


Carrol nasceu em 27 de janeiro de 1832 na Inglaterra, em uma família do norte conservadora e religiosa. Muitos ancestrais do autor eram oficiais do exército ou clérigos da Igreja Anglicana. Seu avô paterno, um oficial do exército, moreu no campo de batalha quando seu pai ainda era bebê. Seu pai era um bom aluno, com um futuro acadêmico brilhante à sua frente, mas optou por seguir a carreira da igreja e casou-se com sua prima primeira em 1827 e assumiu uma igreja rural. O pai do autor era um homem bastante conservador nas suas visões da igreja e estava constantemente envolvido em disputas políticas.


Carrol nasceu em 1832, em uma frataria de 11 irmãos. Carrol foi o terceiro filho, mas o primeiro filho homem do casal.  As crianças foram educadas em casa. A lista de livros selecionados para seus estudos demonstra uma aptidão literária precoce. Tanto ele quanto seus irmãos sofriam de gagueira, uma condição que influenciou sua vida social nos anos seguintes. Aos 12 anos ele foi enviado para uma escola privada nos arredores de sua casa, na qual parece ter sido feliz. Aos 14 anos, porém, foi enviado para outro colégio do qual escreveu:


"Eu não posso dizer... que qualquer circuntância terrestre me induziria a reviver aqueles três anos novamente... Eu posso honestamente dizer que se pudesse ter ficado seguro... dos problemas à noite e das labutas da vida diária, a vida teria sido comparativamente mais fácil de se levar."


Apesar das dificuldades sociais e pessoais, Carroll era um excelente aluno.


Algumas fontes trazem que a gagueira de Carroll só ocorria quando estava em companhia de adultos, nunca na companhia de crianças, mas há poucas evidências desta teoria. Embora a condição incomodasse o autor grandemente, ela nunca foi suficientemente debilitante para impedir seu desempenho social.


Carroll deixou o colégio aos 17 anos mas apenas ingressou na Universidade de Oxford aos 19 anos. Sua vida nestes dois anos permanece um mistério. Após apenas dois dias na universidade ele recebeu uma carta chamando-o de volta a casa pois sua mãe havia falecido de "inflamação do cérebro" aos 47 anos de idade.


Voltando à universidade, sua carreira oscilava entre altamente promissora e terrivelmente distraída. Em geral, Carroll não estudava muito mas era excepcionalmente dotado e saía-se bem nos testes. Em 1852 ele recebeu um First in Honour Moderations (equivalente a 80% ou mais dos créditos disponíveis) e recebeu uma bolsa de estudos. Um pouco mais tarde, porém, ele falhou em conseguir outra bolsa de estudos, o que atribuiu a sua incapacidade de aplicar-se seriamente com disciplina. De qualquer forma, seu talento como matemático assegurou-lhe uma docência na universidade, posto que ocupou pelos próximos 26 anos. O salário era bom, mas o trabalho tediante.


Desde a juventude Carroll escrevia poesias e contos, gozando de moderado sucesso. Entre 1854 e 1856 seus trabalhos apareceram em publicações nacionais e pequenas revistas. Ainda em 1856, um novo reitor, Henry Liddell, foi nomeado na universidade e trouxe consigo sua família: mulher e filho e três filhas, entre elas Alice. Há diversas evidências de que seus trabalhos foram baseados nesta criança e o poema ao final de Alice no Mundo do Espelho soletra o nome de Alice Liddell. Embora diversas referências a uma Alice real sejam encontradas em seus trabalhos, Carroll negou repetidamente no fim de sua vida que sua heroína tenha sido baseada numa criança real.


Aparentemente a amizade com a família Liddel era íntima e Carroll costumava levar as crianças a passear de barco (primeiramente o menino, depois as três garotas). Foi num destes passeios, em 1862,  que Carroll começou o rascunho da história que se tornaria seu primeiro e maior sucesso comercial: Alice no País das Maravilhas.


Em 1871 foi publicado o segundo livro, Alice no Mundo do Espelho. O livro possui uma atmosfera mais sombria, provavelmente resultado da depressão em que o autor se encontrava após a morte de seu pai (1868).


Além da literatura, Carroll tinha também por hobby a fotografia. Rapidamente ele dominou a técnica e tornou-se um famoso fotógrafo, chegando a brincar com a ideia de tornar-se um fotógrafo profissional. Aparentemente mais de 50% das fotos realizadas por Carroll traziam como tema meninas. Seus trabalhos com crianças nuas foram presumivelmente perdidos, mas seis fotos foram encontradas recentemente, tendo sido publicadas e estão disponíveis online.


Carroll também se aventurou no campo das invenções, filosofia, jogos de lógica e trabalhos matemáticos, preferencialmente nos campos da geometria, matrizes e lógica, escrevendo quase uma dúzia de livros.


Na velhice ele continuou seu trabalho na universidade e lá permaneceu até sua morte, em 14 de janeiro de 1898. Carroll faleceu aos 65 anos, de pneumonia contraída após influenza.


Pedofilia


Evelyn Hatche, foto de Lewis Carroll
Evelyn Hatche, 8 anos

A preferência por amizades com meninas (entre 8 e 10 anos), a aparente falta de interesse em relações com mulheres, e leituras psicológicas posteriores de sua obra - especialmente fotografias de crianças nuas - são os fatores que alimentam a especulação de que Carroll tenha sido um pedófilo.


Após anos de amizade com a família Liddell, em 1963 houve uma ruptura, de certa forma abrupta, que parece ter sido causada pelo desejo de Carroll em se casar com Alice (então com 11 anos). Entretanto, nunca houve suficiente evidência para esta teoria e diversas páginas de seus diários, que fazem referência a este período, foram arrancadas provavelmente por familiares, na tentativa de preservar a reputação da família.


Praticamente todos os biógrafos de Carroll em anos recentes, incluindo Morton N. Cohen, Michael Bakewell and Donald Thomas, chegaram à conclusão de que Carroll era um pedófilo, mesmo que celibato. A evidência para esta conclusão, mesmo que circunstancial, é forte.


Carroll era um solteirão, que despendia a maior parte de seu tempo livre com meninas. Sua fotografia preferida era uma foto de Alice semi-nua, vestida como uma mendiga. Até mesmo o autor Vladimir Nabokov (autor de Lolita) chamava seu personagem Humbert Humbert (o homem que se apaixona pela heroína de 11 anos) de Lewis Carroll, conforme admitiu em uma entrevista à Vogue em 1966.


Alice Liddell, foto de Lewis Carroll
Alice Liddell

Em um artigo de revisão ao New York Times em 1999, Boxer, especialista em fotografias, escreveu que o que emerge das fotografias de Carroll é bastante desconcertante. As crianças nas fotos estão em gritante contraste quando comparadas com as fotos de adultos, feitas pelo autor. As imagens infantis são ousadas, arteiras, misteriosas e sedutoras. Os modelos parecem estar tão felizes e à vontade com o setting quanto o fotógrafo. Carroll, por sua vez, conseguia obter algo de suas modelos que, por falta de uma palavra melhor, Boxer categorizou como sexual.



Lewis Carroll e Alice
Carroll e Alice

Os trabalhos fotográficos de Carroll também incluem fotos de modelos adultos, mas nestes os modelos são geralmente pais com suas filhas: Em uma delas, George MacDonald, um amigo de Carroll está sentado com um livro enquanto sua filha se curva sobre ele. O braço do pai está em volta da cintura da menina, mexendo no seu cinto, como uma criança o faria. A mão da menina está no ombro de seu pai, como se ela fosse um adulto.


O trabalho fotográfico de Carroll é o que tem alimentado com mais força as declarações de que o autor era um pedófilo. Tal comportamento de proximidade com crianças também estimulou e foi o que deu início a seus trabalhos literários, conforme descrito acima. Carroll costumava levar as crianças Liddell para longos passeios de barco e aparentemente as entretinha contando histórias. A pedidos da pequena Alice, Carroll passou a escrever as histórias e assim surgiu seu primeiro livro.


O outro lado


Da mesma forma que existem defensores de que o autor era um pedófilo, diversos estudiosos e biógrafos acreditam que o autor tenha sido injustiçado. Liderados por Hugues Lebailly e Karoline Leach, estes pesquisadores sugerem que as fotografias de crianças nuas devem ser vistas à luz do "Culto da Criança Vitoriana", no qual a nudez infantil era percebida como uma expressão de inocência. Aparentemente, fotos de crianças nuas eram moda nos tempos do autor e a maioria dos fotógrafos famosos da época as tinham em seus portfólios. Muitos autores também dão outra interpretação às paginas arrancadas dos diários de Carroll, sugerindo que o autor teria tido um caso com a mãe de Alice e não com as filhas, justificando a retirada de tal informação pela família do mesmo.


Uso de drogas


Alegações de que Carroll usava o fungo ergot, do qual LSD foi eventualmente derivado também são populares. O ergot causa experiências psicoativas quando utilizado em grandes quantidades e era prescrito como tratamento para diversas condições no século 19. Enquanto que diversos artistas e poetas vitorianos obtiveram inspiração em drogas alucinógenas (como o Absinto) no século 19, não existe evidência de que Carroll realmente utilizou estas drogas.


Carroll, entretanto, era um utilizador pesado da cannabis (maconha). Na época a droga era legal e Carroll costumava comprar hashish (haxixe) constantemente.


Enxaqueca, macropsias e micropsias


Um artigo de 1999 do The Lancet, sugere que pelo menos uma parte das aventuras de Alice tenha sido baseada nas percepções de Carrol sobre suas auras enxaquecosas. Aura é um primeiro estágio da enxaqueca ou de crises convulsivas, no qual a pessoa pode experienciar alucinações (visuais, olfativas, auditivas, etc) e outras alterações perceptivas. Carroll notou as alucinações enxaquecosas pela primeira vez em uma página de seu diário de 1885, no qual escreveu que "havia experimentado, pela segunda vez, aquela estranha afecção óptica de ver fortificações que se movem, seguida de dor de cabeça". Devido ao fato de este fenômeno ter sido descrito apenas uma vez antes de Alice no País das Maravilhas ter sido publicado, muitos autores descartam esta teoria.


Os autores do artigo, entrentato, acreditam ter achado evidências que pode alterar esta opinião:


Os autores descrevem um rascunho desenhado por Carroll entre 1855 e 1862, no qual a figura é um elfo, desenhado meticulosamente excepto pelo fato de estar sem todo o lado direito do rosto, partes do ombro direito, sem punho e mão direitos. Esta estranha omissão, segundo os autores, parece sugerir um "round border defect (defeito de limites arredondados)... semelhante a um escotoma negativo". Escotomas negativos são fenômenos nos quais o paciente não vê partes de um objeto que seriam captadas por certas partes da retina, afetada pela enxaqueca.


A segunda sugestão para a teoria envolve uma entrada no diário de Carroll em 1856, no qual ele escreveu (a tradução é minha): "Consultei-me com o Senhor Bowman, o oculista, sobre meu olho direito: ele não parece pensar que algo possa ser feito para remediá-lo, mas recomenda-me que leia por longos períodos." Os autores especulam que o autor tenha procurado o oculista para tratamento do escotoma negativo que poderia ter produzido o defeito em seu desenho. Os autores concluem que a recorrência de alucinações cada vez mais familiares com o tempo poderiam "explicas as similaridades de outra forma inexplicáveis entre as experiências descritas nos dois livros "Alice".


A Síndrome de Alice no País das Maravilhas (SAPM)


A SAPM (nomeada em homenagem a Lewis Carroll), também conhecida como Síndrome de Todd, é uma condição de desorientação neurológica que afeta a percepção. Os pacientes geralmente apresentam macropsia (alucinações nas quais os objetos tornam-se gigantes), micropsia (objetos tornam-se pequenos), e outras alterações de tamanho e ou distorção das modalidades sensoriais. A síndrome é geralmente associada à enxaquecas, tumores e ao uso de drogas psicoativas.


O autor não sofria desta síndrome (ao contrário do que muitos pensam), mas foi homenageado na sua denominação, visto que os sintomas são bastante similares às aventuras de Alice nas suas obras.


Para concluir, devo lembrar aos leitores que qualquer artigo de diagnóstico histórico é sempre cheio de obstáculos e perigos, visto que os sintomas não são descritos por um profissional de saúde e, mesmo que fossem, os critérios diagnósticos são fluidos e mudam de tempos em tempos. Para se garantir maior fidelidade deve-se sempre tentar utilizar fontes primárias como diários e cartas da pessoa afetada e alvo da descrição. O que se chamava enxaqueca no século 19 pode não ser entendido como tal no presente momento. Da mesma forma, os critérios diagnósticos em psiquiatria mudam com a sociedade e cultura e dificilmente pode-se impor um diagnóstico de pedofilia como o entendemos hoje aos filósofos gregos, por exemplo, visto que a iniciação de meninos por adultos era típica daquela cultura. Embora existam evidências de um interesse peculiar de Lewis Carroll por crianças, seja ele de cunho sexual ou não, todos os fatores descritos acima fizeram parte da vida e obra do autor e desta forma mereceram ser analisados individualmente neste post.



Referências:


Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). (2000). Normas para publicação na Revista Casos Clínicos em Psiquiatria. Casos Clin Psiquiatria 2000; 2(2):102-102



Boxer S. Photography review; Girls Loved Him, Pedophile or Not. The New York Times, April 2, 1999.


Collingwood, Stuart Dodgson. The Life and Letters of Lewis Carroll


 Evans RW, & Rolak LA (2004). The Alice in Wonderland Syndrome. Headache, 44 (6), 624-5 PMID: 15186310


Podoll K, & Robinson D (1999). Lewis Carroll's migraine experiences. Lancet, 353 (9161) PMID: 10218566


Reed B. Legend of Lewis Carroll has dark side. Gazette, The (Colorado Springs), Oct 26, 2006


Wikipedia. Lewis Carrol.

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