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Transtorno de personalidade nas vilãs da TV

Há alguns anos a revista Isto É fez uma excelente análise das vilãs de novela que amamos odiar e sua relação com transtornos de personalidade.


"Raio X das vilãs



O telespectador as odeia. Mas não desprega os olhos da tela da tevê


Colaboraram: Eliane Lobato (RJ) e Willian Novaes.



Cena 1: se a personagem Laura da novela Celebridade, interpretada pela atriz Cláudia Abreu, tivesse algum dia pisado o set de filmagem da novela Mulheres Apaixonadas e lá se deparado com uma Heloísa em crise de ciúme, coitada da Heloísa, a personagem interpretada por Giulia Gam – com certeza Laura a teria coberto de porradas e a teria internado à força numa clínica psiquiátrica. Explica-se: Laura só pensa em si e não tem o menor respeito ou sentimento por ninguém, passa por cima de quem a perturba ou lhe atravanca o caminho. É essencialmente fria e racional, enquanto Heloísa era sobretudo uma mulher psiquicamente cega por sua impulsividade.




Anti-social: uma Laura da vida real que aja como a Laura personagem com certeza apresentou em sua infância e adolescência diversos transtornos de conduta


Cena 2: se ocorrer o contrário e algum dia a personagem Heloísa, ainda nos seus momentos de crise, invadir uma cena de Laura, duas coisas podem acontecer: ou Laura a manipula e a coloca a seu serviço na execução de alguma ruindade ou Heloísa, atuando aos berros como quem joga todas as suas emoções e dores psíquicas no ventilador, fará ruir o mais sigiloso e meticuloso dos planos maldosos de Laura. Explica-se: Heloísa é uma personalidade altamente sugestionável, tipo camaleão e portanto facilmente passível de ser manipulada. Mas, por agir impulsivamente e por ser uma pessoa explosiva, ela também seria capaz de colocar por terra o mais racional, frio e bem arquitetado plano de Laura.



Há então uma diferença entre ambas, ainda que em alguns capítulos, cada uma no seu set e na sua novela, as consequências de suas ações tenham feito sofrer outras personagens – e levado o telespectador a odiá-las, mas sem despregar os olhos da tevê. Heloísa quando berrava e xingava, quando invadia o espaço do marido, quando lhe enchia o saco a qualquer hora do dia ou da noite, quando se cortava ou tentava suicídio, fazia tudo isso porque era invadida por um sentimento real ou imaginado de abandono e estava implorando por afeto. Corte: ainda que o tivesse, ela continuaria achando que não estaria recebendo a devida atenção e afetividade. Já Laura, quando se vale de todos os métodos ilícitos, perversos, antiéticos e amorais para aniquilar Maria Clara (a personagem vivida por Malu Mader), ela só tem como objetivo a conquista de poder e dinheiro. Não atua psiquicamente buscando o não-abandono; atua, isso sim, buscando somente vantagens materiais. Corte: por mais que as consiga, sempre quererá mais e mais.


Da tela para a vida real, a diferença entre as tantas Lauras e as tantas Heloísas de carne e osso também é a mesma: a calculista Laura aproxima-se de uma personagem portadora de transtorno da personalidade anti-social – coisa que a psiquiatria, até há pouco tempo, considerava apenas ruindade e mau-caratismo, mas hoje já começa a cogitar da possibilidade de ser uma patologia e, assim, quem sabe passível de tratamento e controle. Quanto à impulsiva Heloísa, ela era mesmo uma mulher doente, portadora de transtorno da personalidade borderline, e na comunidade científica já não há dúvida de que esse tipo de transtorno é uma doença – e existem tratamentos de controle da enfermidade por meio de medicamentos e de psicoterapia. Cada qual em sua novela ou em seu set, mas ambas apaixonantes para os telespectadores, vale a pergunta: quem é Laura e quem é Heloísa?



LAURA, IMANTADA E ATALHISTA


Imantada porque é extremamente sedutora e atrai as pessoas e atalhista porque sempre busca o caminho mais curto para as suas conquistas materiais, Laura possui essas duas características de personalidade. Até aí tudo bem, não fossem a sedução e o atalho utilizados para a maldade, a manipulação e a destruição de Maria Clara. “A Laura age o tempo todo contra tudo e contra todos”, diz Maria de Lourdes Motter, coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovela e professora livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. “Ela não demonstra sentimentos por ninguém, nunca aparece triste ou abalada, não sofre nem se arrepende. Se for preciso, é capaz de prejudicar todos os personagens, é fria e calculista.” Resumo da ópera: Laura espalha sofrimento ao seu redor, mas não sofre com isso.


O que é transtorno anti-social?


Nas novelas e nos filmes, as personagens geralmente já aparecem adultas. Mas, para que alguém possa receber o diagnóstico de personalidade anti-social, é preciso que alguns pontos sejam observados na infância e na adolescência – entre eles o de saber se essa pessoa apresentou transtornos de conduta ao longo de sua vida até completar 18 anos, todos compatíveis com a escadinha progressiva da idade. Aqui entram as imagens da posta de peixe e do filé de peixe, como define o psiquiatra Alvaro Ancona de Faria: “Quem olha a posta vê de frente a fatia do peixe e sabe apenas como a fatia é. Vê apenas sintomas. Quem olha o filé tem uma visão longitudinal do peixe e passa a saber como é o peixe todo. Para diagnosticar transtornos de personalidade é preciso olhar o peixe inteiro. A personalidade é o filé, não a posta.”



O diagnóstico de anti-social só pode ser fechado para as pessoas a partir dos 18 anos de idade – ou seja, o filé tem de ser olhado. Mais: para alguém ser portador de transtorno da personalidade anti-social é preciso que tenha apresentado transtornos de conduta: cabular aula sistematicamente, maltratar animais, mentir na escola, mentir para os pais, mentir para obter vantagens materiais, furtar dinheiro em casa, iniciar com frequência brigas na escola. “Uma criança ou adolescente que tenha transtorno de conduta não irá necessariamente se tornar um anti-social. Mas se estudarmos qualquer anti-social, ele sempre teve transtornos de conduta na infância e adolescência”, diz a psiquiatra clínica, psiquiatra forense e doutora em ciências pela Universidade de São Paulo, Hilda Morana, uma das principais autoridades internacionais em transtorno de personalidade e a única no Brasil especializada em psicopatia. Algumas características do transtorno anti-social são: desrespeito brutal aos direitos e sentimentos dos outros, ausência de sentimento de culpa e remorso, insensibilidade com as outras pessoas, incapacidade de planejar o futuro, incapacidade de aprender com a própria experiência de erros e fracassos.




Bordeline: impulsividade, instabilidade afetiva, sentimento de abandono, autoagressão e tentativa de suicídio marcaram a personagem Heloísa


HELOÍSA, UMA HEMORRAGIA DE EMOÇÕES


Hemorragia de emoções porque, quando disparava sua metralhadora giratória psíquica contra o personagem de seu marido, Heloísa estava de fato sofrendo intensamente um sentimento de abandono, real ou imaginado – seja qual for, ela o sentia psiquicamente como real. Detalhe importante: ainda que o marido não a tivesse deixado, ela também teria esse sentimento de abandono que detona a impulsividade e a instabilidade afetiva, duas cortantes características do transtorno da personalidade borderline. Eis um ponto que distancia a anti-social Laura da borderline Heloísa: a vilã de Celebridade não sofre, enquanto a vilã de Mulheres Apaixonadas sofria, tinha sentimentos de culpa e remorso. “Quando a mulher borderline, por exemplo, fica perturbando o marido, ela acredita que tem uma motivação legítima para fazer isso, é o sentimento de abandono”, diz o psiquiatra e analista jungiano Alvaro Ancona de Faria, diretor de cursos abertos da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. “Ela é uma enferma, mas não é uma psicótica, dá um passeio rapidinho na psicose e logo sai dela.


E há outra característica marcante do transtorno borderline que são as automutilações, o que demonstra que elas sofrem. Muitas borderlines afirmam: eu me mutilo e me corto para não me matar”, diz Faria. A ferida do corte é, na verdade, uma cicatrização pelo avesso: apesar de ser um corte, ela é a cicatrização de uma ferida muito maior, de um corte muito mais profundo, que seria a morte. Resumo da ópera: Heloísa espalhava sofrimento ao seu redor, mas sofria com isso


O que é transtorno borderline?


Traduzindo do inglês, a expressão borderline significa fronteira ou fronteiriço. Fronteira do que com o quê? Basicamente, fronteira entre um sentimento de abandono real ou imaginado que vai subindo de escala até ultrapassar a linha divisória em que a impulsividade leva a pessoa à auto-agressão e à violenta agressão verbal contra os outros – mas principalmente contra aquele que de fato lhe importa afetivamente. Tudo em sua vida emocional é uma fronteira, a ponto de xingar e enxovalhar justamente a pessoa da qual ela quer atenção e amor e para a qual ela quer dizer “eu te amo”. Repita-se: ainda que o ser amado esteja com ela, ainda assim ela continuará a sentir abandono. A mulher borderline (utiliza-se a imagem feminina, já que no universo desse transtorno 75% são mulheres), se auto-agride e se automutila muito mais do que agride fisicamente os outros. Se Heloísa de Mulheres Apaixonadas se sentisse abandonada por Laura de Celebridade, ela berraria, xingaria, se cortaria e se mutilaria, faria uso abusivo de álcool ou tranquilizantes, chegaria a tentar suicídio. Se ocorresse o contrário, se fosse Laura a se decepcionar com Heloísa, com certeza a vilã de Celebridade agrediria fisicamente a outra sem o menor remorso. Toda a atuação da borderline é um apelo pelo afeto, é uma doença do vínculo. A impulsividade e a instabilidade afetiva são as suas marcas registradas. A borderline sangra psiquicamente a sua própria emoção e a sua própria dor, ao passo que a anti-social vai esburacar e sangrar justamente a emoção do outro – e, não raramente, também o físico da outra pessoa. A explicação é do psiquiatra Alvaro Ancona de Faria: “Eu defino a borderline como sendo a teoria do C.Q.D., que significa o famoso Como Queríamos Demonstrar. A mulher borderline tanto perturba o namorado, achando que ele vai abandoná-la, que o namorado se cansa e a abandona mesmo. Aí a borderline diz: eu não falei que você iria me deixar? Ou seja, ela vive fechando o círculo do C.Q.D.” Eis outro exemplo típico, segundo Faria: “O psicoterapeuta avisa uma borderline que não vai poder atendê-la na próxima semana porque ele tem, por exemplo, uma viagem marcada. A paciente responde: se fosse aquela vaca que vem aqui antes de mim, se fosse aquela vaca, você atenderia!” E Faria conclui: “Eu usei a expressão vaca porque esse é um dos xingamentos mais usados pelas borderlines.” Outra imagem associada à auto-agressão e ao sentimento de abandono vem de Rosa Cukier na obra Eu te odeio... por favor não me abandones: “Imaginem uma pessoa que por algum erro constitucional nascesse sem pele: qualquer toque, por mais leve, provocaria dor e reação intensa. Assim é o borderline, o que lhe falta é a pele emocional.”


TRATAMENTOS POSSÍVEIS



Um ponto é unanimidade na ciência, seja ela clínica ou forense (ciência aplicada às questões da Justiça): tanto o transtorno da personalidade borderline quanto o transtorno da personalidade anti-social têm origem em fatores biológicos, psicológicos e ambientais. Borderlines como Heloísa não são, ao contrário da cultura impregnada na sociedade, pessoas de “sangue ruim”. São doentes. E podem ser tratadas com psicoterapia e medicamentos, geralmente antipsicóticos em baixa dose e antidepressivos que atuam no neurotransmissor serotonina. No momento em que estou pensando para escrever esse texto, no momento em que os meus dedos digitam o teclado do computador, no momento em que o leitor está lendo, isso só é possível porque em nosso cérebro os neurônios estão se comunicando uns com os outros. Essa comunicação se dá através dos neurotransmissores – e a serotonina é um deles. Nos borderlines ela passa de um neurônio para o outro e o que sobra dela é rapidamente reabsorvido pelo neurônio anterior. Os antidepressivos usados nesses casos retardam essa reabsorção, fazendo com que a serotonina que sobra atue por mais tempo. Não há cura, mas é possível o paciente viver bem em determinados períodos seguindo o tratamento.


O transtorno borderline é uma doença, não é ruindade. E o transtorno anti-social de Laura? Aqui é o nó da questão, mesmo porque é sobre pessoas como ela que recai com mais força o estigma da “fulana sangue ruim”. O fato é que também os anti-sociais começam a ser tratados pela ciência. “Isso é possível”, diz a psiquiatra Hilda Morana, pioneira no Brasil nesse tipo de atendimento, tanto ambulatorial no Hospital das Clínicas de São Paulo quanto em seu consultório. “Ainda não temos dados conclusivos, mas estamos medicando com sucesso portadores de transtorno anti-social”, diz ela. Hilda faz um corte necessário entre a psiquiatria clínica, que cuida dos transtornos antissociais, e a psiquiatria forense, que aborda também a psicopatia. E o que é psicopatia? “É a ruindade fortuita, a ruindade desnecessária”, diz ela. “Alguém que sequestre para extorquir dinheiro, mas não corte a orelha da vítima, está agindo como um anti-social. Claro que tem de ser preso e punido, mas cientificamente é um anti-social. Já alguém que sequestre e corte a orelha da vítima, aí sim, está tendo um comportamento psicopata porque para conseguir o resgate não precisaria fazer isso. É uma ruindade que foge à coerência”, conclui Hilda. Nessa direção, ainda que nova no Brasil mas já aceita em países como os EUA e o Canadá, também a anti-social Laura é doente e passível de tratamento – desde que até o último capítulo, por exemplo, ela não corte a orelha de ninguém, uma “ruindade desnecessária” para conseguir todo o dinheiro e todo o poder que tanto persegue à custa do sofrimento da Maria Clara.


SINAIS DE ALERTA


Estima-se que 5,5% da população canadense com idade entre quatro e 16 anos tenha transtorno de conduta. Atinge cerca de 2% de meninas entre quatro e 11 anos e 10,4% de meninos entre 12 e 16 anos. O transtorno de conduta pode estar ligado à hiperatividade e ao déficit de atenção: 43% dos casos. Associados a outros transtornos de conduta, a American Psychiatric Association detalha dois pontos: criança ou adolescente que passa constantemente a noite fora de casa sabendo que a família o proibiu (início desse comportamento antes dos 13 anos) e cabula aulas com frequência (início desse comportamento antes dos 15 anos)


INFANCIA DOÍDA


O índice de suicídio entre os borderlines chega a 10%. Entre 50% e 70% das borderlines têm

histórico de abuso sexual na infância, de ter crescido numa família que brigava muito, de ter se decepcionado em criança com os seus cuidadores. De 50% a 70% têm depressão e transtorno do humor. 25% têm transtorno alimentar, 35% tem abuso de álcool e drogas."


Revista Isto E, volume 1800 de 7/4/2004

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